“Corpo Elétrico” é um exercício de desconstrução do corpo e da mente


O diretor mineiro Marcelo Caetano é formado em Ciências Sociais. Debandou-se para o cinema, primeiro fazendo filmes de curta-metragem, depois foi assistente de direção em importantes filmes brasileiros, composto por uma safra de diretores que vem trazendo uma renovação para o cinema brasileiro, tais como: Hilton Lacerda, Gabriel Mascaro e Anna Muylaert. E ainda trabalhou na produção de elenco para Kleber Mendonça Filho, em “Aquarius”, quando conheceu o ator paraibano Kelner Macedo. Kelner havia feito o teste para o papel de sobrinho da personagem de Sônia Braga, porém, o ator não conseguiu a vaga.

 

“Corpo Elétrico” é o primeiro longa do diretor e vem angariando prêmios em diversos festivais dentro e fora do Brasil. O título do filme é uma referência ao poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, do poeta americano Walt Whitman, que descreve de maneira detalhista diversos tipos de corpos com seus contornos, movimentos, articulações e formas. Baseado nesse contexto do poeta, Marcelo contou com a colaboração do Hilton Lacerda para ajudá-lo no primeiro tratamento do roteiro. Depois ele deu continuidade sozinho, porém, no momento de estruturação das cenas, sentiu a necessidade de mais alguém para ajudá-lo. Então, chamou o assistente de direção Gabriel Domingues. O resultado que vemos na tela é um filme fluido, coeso e livre.

A história gira em torno de Elias (Kelner Macêdo), um jovem gay nordestino que trabalha numa fábrica de tecidos em São Paulo. O prazer e o desejo são objetivos principais na vida de Elias, que ama viver intensamente suas relações sexuais com variados parceiros. O ciúme não faz parte do universo de suas experiências, e com isso ele se permite percorrer de maneira livre todos os desejos instintivos que a natureza do seu corpo solicita. Dentro dessa dimensão, Elias interage sempre de maneira positiva com todos com quem se relaciona. Talvez porque o seu olhar sobre a vida e as pessoas seja sempre leve e generoso. O único momento em que ele parece se chatear um pouco é com o novo funcionário que chega à fábrica. Fernando é um jovem negro vindo de Guiné-Bissau que entende português e fala com o sotaque do seu país. O personagem é vivido pelo ator Welket Bungué, que também esteve em “Joaquim”, de Marcelo Gomes. Elias demonstra um certo interesse em Fernando, porém, este não compartilha dos mesmos interesses sexuais que ele. O roteiro de Caetano não segue, e nem insiste, por esse viés pseudamente romântico, pois a proposta do filme é justamente desconstruir qualquer tipo de fórmula roteirística que leve seu protagonista a uma ideia de história de amor padronizada.


Desconstrução é realmente a palavra-chave e conceito de “Corpo Elétrico”. A relação de Elias com os seus colegas da fábrica, por exemplo, mostra a intimidade além do ambiente de trabalho. Afinal, os corpos que trabalham também querem se divertir e sentir prazer para complementar a satisfação de suas vidas. O mais interessante desse enfoque são os diferentes tipos de pessoas que compõem o quadro de funcionários da fábrica: mães de família, gays, heterossexuais, religiosos, negros e brancos. E mostra que apesar das diferenças, todos se relacionam de maneira respeitosa e tranquila. Marcelo consegue abordar a naturalidade das diferenças como algo realmente natural. Talvez porque ele permitiu que houvesse situações que surgiram de improviso, porém, sem fazer com que se perdesse o objetivo que se pretendia alcançar. A cena em que todos os funcionários saem tarde da noite da fábrica, devido aos serões de horas extras, demonstra uma habilidade de direção primorosa. A câmera caminha junto aos atores e conseguimos ver e ouvir as conversas entre cada grupo diferente em um plano sequência muito bem planejado e justificado.



O roteiro do filme ainda consegue agregar o universo das drags queen, com participação da Márcia Pantera e a funkeira trans Linn da Quebrada. Wellington (Lucas Andrade) também é gay e trabalha na fábrica. É ele quem introduz Elias nesse contexto e, posteriormente, todos os outros funcionários.

“Corpo Elétrico” é um filme de celebração da mistura de tudo que somos e de tudo que existe dentro e fora dos nossos corpos. Numa época em que a tolerância e o respeito parecem estar cada vez mais escassos, uma produção como essa nos traz a sensação de que é possível imaginarmos um mundo assim: livre, leve e despido de preconceitos.


FICHA TÉCNICA

Direção: Marcelo Caetano
Roteiro: Marcelo Caetano, Hilton Lacerda, Gabriel Domingues
Produção: Marcelo Caetano, Roberto Tibiriçá
Fotografia: Andrea Capella
Distribuição: Vitrine Filmes
Duração: 1h34min
País: Brasil
Ano: 2017

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